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Comparar as capacidades de raciocínio de um geek com as capacidades de transmissão de dados da máquina de que serve, ainda que possa ser hoje tão provocador como há 40 anos, é na verdade uma ousadia recuperada dos anos 1970. A frase que dá título a este ensaio é reproduzida de um crachá lançado nessa década pela revista Computerworld, como parte de uma série de coleccionáveis com trocadilhos bem-humorados acerca de uma então novíssima subcultura obcecada pelas tecnologias de informação. A ideia de que a sofisticação tecnológica possa servir, na facilidade do espanto, como compensação para fragilidades de vária ordem, não é uma coisa nova. Desde a alavanca que o homem se aumenta nos objectos, e independentemente do carácter mais ou menos sofisticado dessas próteses, nascem sempre dúvidas acerca de onde começa o instrumento e onde acabam as capacidades do homem que se serve dele. Esta será, contudo, uma questão ainda sem resposta se pensarmos que, ao contrário do processador, o cérebro humano é provavelmente o órgão que a ciência menos bem conhece e aquele que mais dificuldades temos em avaliar. Apesar dos grandes desenvolvimentos que as neurociências têm beneficiado em quadros recentes, grande parte dos segredos das redes de computação neural ainda estão efectivamente por descodificar, e como eles pode ainda permanecer misterioso e romantizado o funcionamento da mente humana. 

Beatriz Colomina sugere que, sem a pretensão do conhecimento global dos processos acima descritos, a comparação deva ser feita, mas na simplicidade eficaz de uma análise aos métodos de representação de ambas as partes. Em “Skinless Architecture”1 assinala que, para nos podermos perguntar acerca da existência de uma arquitectura virtual, temos de olhar para os meios de representação da medicina contemporânea. A questão da representação arquitectónica ser decalcada das representações médicas e das teorias da saúde, que defende também em Sexuality & Space2, parece ganhar novas expressões quando o assunto é arquitectura digital. Depois de um Movimento Moderno que Colomina interpreta como uma consequência directa da tuberculose – que os arquitectos trataram com higiene e brancura, sol, ventilação, exercício físico e vida ao ar livre –, a viragem para o século XXI está marcada pelo cancro, ligado à mutação, ao crescimento anómalo e descontrolado de células, e pelo HIV, conotado com os comportamentos desviantes e muito ligado à sexualidade. É também a época da obesidade e do sedentarismo e ao mesmo tempo da magreza doentia e da obsessão pelo corpo perfeito. É sob esta consciência, na contemporaneidade da generalização da cirurgia estética, das ecografias 3D, das intervenções cirúrgicas a laser, que podemos enveredar para a recente introdução de novas técnicas de representação arquitectónica, como a maquinaria de prototipagem rápida – impressoras 3D, fresagem, corte a laser – em sistemas file-to-factory. A adopção dos softwares de modelação tridimensional como ferramenta integrante do processo de concepção de espaço pode igualmente constituir objecto desta reflexão, na medida em que estes softwares passaram a permitir experimentar, em tempo real, projecções de espaço que anteriormente só o cérebro humano conseguia produzir.

 

Bang Bang (My Baby Shut Me Down)

As ciências da computação nascem curiosamente embrulhadas nas ciências bélicas quando, em 1941, em contexto militar, os dois primeiros computadores da História são feitos para a guerra. Em pleno conflito mundial, sob a liderança de Alan Turing, o Colossus era desenvolvido em Inglaterra com o objectivo de tentar quebrar o sistema de código alemão da Enigma Machine. Ao mesmo tempo, na Universidade de Harvard, a IBM desenvolvia o Harvard Mk I na procura de um sistema que as forças militares norte-americanas pudessem utilizar para a execução de tarefas de cálculo entediantes, como a produção de tabelas de tiro para a artilharia. Mais tarde, já em 1946, o exército americano patrocinou o desenvolvimento de uma outra máquina, na University of Pennsylvania, usada pelos militares para a execução de cálculos relacionados com trajectórias balísticas. A estas máquinas electromecânicas se atribui a primeira geração da computação, seguida, a partir de 1947, de uma segunda geração diferenciada pela introdução do transístor. O aparecimento do primeiro circuito integrado de microchip, em 1959, fez a transição para a terceira geração, que em 1970 daria lugar a uma quarta e última geração de computadores, marcada pelo lançamento, nesse ano, do primeiro microprocessador comercial. 

Embora o desempenho dos processadores e as capacidades de armazenamento de dados, estejam em contínuo crescimento desde a década de 1970, a tecnologia de hardware destas máquinas é, no entanto, basicamente a mesma desde o seu aparecimento. O posterior desenvolvimento da indústria de software conduziu à introdução no mercado de uma série de programas informáticos, progressivamente mais sofisticados, destinados ao desenho assistido por computador. Estes softwares atingiram nos últimos anos níveis de especialização consideráveis, perseguindo uma cada vez maior versatilidade e capacidade de resposta a problemas arquitectónicos específicos e cada vez mais diversos. A rapidez com que geram grandes quantidades de dados e a facilidade com que tornam possível a modelagem e visualização em tempo real de geometrias com elevados graus de complexidade faz com que estas novas ferramentas permitam aos arquitectos manobras espaciais nunca antes possíveis. A franca difusão da utilização destes suportes de software na prática de arquitectura é um fenómeno relativamente recente, mas apesar de o computador ter chegado há pouco aoatelier, e de ser fácil a sensação de sermos os precursores de alguma coisa, na verdade somos só a última versão de uma história antiga. Importa, então, deixar claro que a inserção de processos de computação no exercício arquitectónico é, na realidade, bastante anterior ao CAD. Antes da imagem esteve efectivamente o processo. Antes da vertigem, a lógica.

Durante os anos de 1950, algumas ideias sobre cibernética começaram a ser discutidas por arquitectos nos círculos avant-garde do Independent Group em Londres, que então descobria a disciplina emergente vinda dos EUA. A cibernética tinha sido definida em 1947 por Norbert Wiener, matemático do MIT, como o estudo científico comparativo dos sistemas de controlo e comunicação, no animal e na máquina. A intenção do Independent Group em aplicar os modelos de Wiener à cultura visual nascia, sobretudo, do seu interesse pela compreensão da natureza complexa da cultura popular e das vantagens de a cruzar com a nova tese, aparentemente capaz de fornecer os meios para a analisar. Ainda no período pós-guerra europeu, mas no distinto seio da Internacional Situacionista, Constant Nieuwenhuys desenvolveu o icónico projecto New Babylon, em cujo desenho – que durou entre 1957 e 1972 – eram também pontualmente invocadas noções de cibernética, como suporte tecnológico para as ideias socialistas da cidade utópica situacionista. Tanto na origem como no seu desenvolvimento, durante a segunda metade do século XX, a cibernética conheceu aplicações a uma variedade de sistemas baseados na linguagem – das ciências sociais à administração de empresas –, e as ciências da computação acabariam por ser uma consequência directa dos seus processos de controlo e análise de informação.

Embora os pioneiros da cibernética tenham tido uma influência discreta na produção arquitectónica sua contemporânea, no início dos anos 1960 uma segunda geração de cibernéticos, muito marcada pela figura de Gordon Pask, viria aprofundar as relações entre cibernética e desenho arquitectónico. Em 1963, Pask tornou-se no consultor de sistemas cibernéticos para o projecto de uma ideia socialista de espaço de diversão, cultura e educação a construir no Lea Valley em Londres: o Fun Palace. Pask ganharia um lugar crucial na comissão do projecto que Cedric Price, o arquitecto responsável, via como uma grande estrutura flexível, viva e movediça, como um estaleiro naval. Através do estabelecimento de um sistema de regras e da introdução das noções de dinâmica, controlo e movimento através da tecnologia, a arquitectura tornava-se numa cenografia móvel de guindastes, andaimes, plataformas e módulos articulados, cuja finalidade era a de permitir ao público a adaptação e personalização do espaço, inaugurando um novo tipo de centro de lazer. 

Na década de 1970 as premissas da cibernética acabaram por levar à dúvida especulativa da possibilidade da construção de uma máquina capaz de criar edifícios. Nessa perspectiva o arquitecto Nicholas Negroponte sintetizou em The Architecture Machine3 o resultado de um conjunto de pesquisas feitas pela sua equipa no MIT acerca da possibilidade de criação de um sistema computacional para a produção automatizada de arquitectura, que acabou por se revelar inconclusivo, por implicar delicados processos como a interlocução, a auto-reflexão ou a empatia, definições difíceis de traduzir no sistema binário da programação informática. 

Cedric Price foi em 1979, depois do Fun Palace, responsável por Generator, um projecto de carácter semelhante, impulsionado pela Gilman Paper Company na Flórida. A proposta de Price baseava o seu funcionamento em sistemas computacionais, cuja estratégia de programação fora desenvolvida por Julia e John Frazer, em muito influenciados pelas ideias de cibernética de Gordon Pask. Generator compreendia um conjunto de simples cubos estruturais de 4 x 4, cada um com as suas faces dotadas de um leque de opções. Cada cubo teria incorporados chips capazes de informar um computador central acerca da sua posição e localização. O computador tinha então capacidade de instruir uma série de gruas robóticas a recolocar os cubos, construindo invólucros arquitectónicos infinitamente novos, segundo as necessidades dos utilizadores. Generator era espacialmente pró-activo, uma vez que tinha a capacidade de gerar autonomamente novas configurações espaciais sucessivas, com um sentido da sua própria arqueologia, de diversidade e de repetição. Embora nunca tenha chegado a ser construído – tal como todos os projectos anteriores envolvendo noções de cibernética –, Generator permanece como um marco fundamental da convergência entre as duas disciplinas.

Os anos 1990 entravam como a década em que os arquitectos se apropriavam de forma clara das ferramentas de software que o mercado começava a oferecer. No início da década, um pequeno número de vanguardistas começava a conceber espaços infiltrados pela nova tecnologia, em muito baseados na versão de ciberespaço do Neuromancer de William Gibson, um novo terreno condicionado por novas regras etéreas. Para estes arquitectos, a publicação em 1991 de uma colecção de ensaios editada por Michael Benedikt, intitulada Cyberspace: First Steps4, foi um catalisador muito importante.

John Frazer, depois da passagem pela equipa de Generator, publica em 1995 An Evolutionary Architecture5, obra em que investiga os processos fundamentais de geração de formas arquitectónicas em paralelo com uma vasta pesquisa científica para uma teoria da morfogénese do mundo natural. A obra propõe a natureza como força geradora de forma arquitectónica e uma perspectiva em que a arquitectura é considerada como um modo de vida artificial que deve ser sujeito, tal como no mundo natural, a princípios de morfogénese, codificação genética, replicação e selecção. Em 1996 William J. Mitchell publica City of Bits6, uma abordagem conceptual da instalada arquitectura digital da grande cidade virtual, em que são examinados vários aspectos da arquitectura e do urbanismo no contexto da revolução das comunicações digitais, dos dispositivos electrónicos cada vez mais presentes na vida quotidiana e do crescente domínio do software sobre as formas materiais. 

A revista britânica Architectural Design ganhou nas últimas duas décadas um papel central na publicação de conteúdo ligado às problemáticas da computação. Em 1995 Neil Spiller e Martin Pearce são editores convidados para o número Architects in Cyberspace, reunindo trabalhos de Marcos Novak, John Frazer, Neil Spiller e W. J. Mitchell7, e constituindo provavelmente a primeira síntese de carácter monográfico de produção arquitectónica marcadamente digital. Entre Dezembro de 2003 e Março de 2004 o Centre Pompidou de Paris organizou a exposição Non-Standard Architectures como a primeira mostra de grandes dimensões de uma selecção de trabalhos de investigação arquitectónica contemporânea, ligada ao uso de técnicas digitais em todas as fases de projecto. Doze equipas de arquitectos (Asymptote, dECOI, Greg Lynn FORM, NOX, Oosterhuis.nl, R&Sie(n), Servo ou UNStudio, entre outros), foram convidadas a expor obra construída ou especulativa que reflectisse o dinamismo das suas experiências na relação entre arquitectura e computação. 

 

Na revolução: pixéis ou hormonas?

Aquilo a que se poderá chamar revolução digital tem, como vimos, raízes profundas já na primeira metade do século XX e é ainda um episódio difícil de circunscrever no tempo, com exactidão. Certa é, no entanto, a frescura da sua chegada à escala doméstica da vida, já que só muito recentemente se estendeu ao dia-a-dia do mundo. Certo é também que a chegada foi avassaladora, tanto que ainda trememos, às vezes, maravilhados perante a vista da aldeia global que temos das janelas dos nossos computadores. No início do século XX, quando a mecanização passava por um processo de difusão similar ao que experimentamos, o mesmo tremor de maravilha contribuiu para o aparecimento das celebradas vanguardas artísticas que em primeira mão reagiam ao fenómeno. O Movimento Futurista italiano será provavelmente a mais extrema e desmedida dessas reacções, imponderada e intensa como um amor na adolescência. Para os futuristas, a máquina era tão bela e absoluta que tudo o que com ela não estivesse directamente relacionado tornava-se insignificante e devia por isso desaparecer. Segundo os seus viris manifestos, a História da humanidade subjugava-se para sempre ao novo invento dessa forma arrebatadora a que não reconheciam alternativas. No entanto, as ideias heróicas que propagandeavam não conheceram expressão além das palavras de ímpeto de Filippo Tommaso Marinetti e dos belos desenhos de Antonio Sant’Elia. E embora essas manifestações permaneçam como marcos amados de uma vanguarda destemida, o século XX acabaria por receber a máquina de outras formas, sem que a expressiva histeria futurista tivesse grande influência nisso.

José Bragança de Miranda explica, em “Machines: The Functional Impossibility”8, a natureza do fascínio do Homem pela tecnologia pela proximidade que traz a algo profundamente inquietante para o género humano: a promessa da perfeição. Porque aqui, diz, falar de perfeição é falar de eternidade. Na medida em que é o lado desumano das máquinas que as salva da mortalidade e para o Homem isso é o significado maior do desejo. Ao mesmo tempo, perigo e perfeição. 

Marshall McLuhan aborda em 1964, na sua obra Understanding Media, esta queda do homem para o amor cego pela tecnologia no capítulo “[O amante de mecanismos: Narciso como narcose]”9, servindo-se do mito narcisista como alegoria à quase hipnose que a técnica vem ao longo dos tempos provocando no género humano. McLuhan defende a ideia de que, com o aparecimento da tecnologia eléctrica, o homem criou fora do seu corpo um modelo do seu próprio sistema nervoso central, que lhe permite aperfeiçoar-se e com isso amar-se nela. Derrick de Kerchove, discípulo de McLuhan, dedica também a estas questões um capítulo da sua obra A Pele da Cultura, a que chamou “Tecnofetichismo”10, e no qual, além de expor a sua visão fetichista sobre o fascínio da tecnologia, acrescenta algumas considerações às ideias anteriormente expressas em “Narciso como narcose”. Apoiando a ideia de McLuhan de que esta ânsia não é provocada (pelo menos em exclusivo) pelos mecanismos de sedução da publicidade ou das estratégias de mercado, mas sim por uma voluntária projecção do indivíduo no gadget, De Kerchove acrescenta-lhe a noção do potencial aditivo do automelhoramento, ilustrada pela figura do cyborg narcisista que, com o seu próprio corpo transcendido pela máquina, deseja insaciavelmente seguir a aperfeiçoar-se com a nova invenção de cada dia, num upgrade contínuo e viciante. 

Este crescente e efusivo desejo de ligação contínua à máquina digital tem sido investigado também por alguns autores que o associam directamente com os mecanismos do desejo passional e erótico. Claudia Springer estuda a hipótese da tecno-erótica contemporânea emElectronic Eros11, em que o erotismo é explicado pela diluição que a tecnologia permitiu das fronteiras entre orgânico e inorgânico, permitindo finalmente a tão esperada fusão corpo máquina que o homem há tanto tempo sonhava como a resposta a todos os seus sonhos e limitações. Michael Heim, por sua vez, interpreta a intensidade das ligações a dispositivos digitais como uma aplicação contemporânea de Platão. Segundo o autor, o nosso fascínio com os computadores é, de facto, erótico, numa relação simbiótica e, em última análise numa espécie de casamento mental com a tecnologia. Segundo Heim, o mundo processado como pura informação não fascina apenas os nossos olhos, também nos rouba os corações. 

Nos últimos anos, algumas das mais conceituadas universidades do mundo abriram programas de estudos e começaram a formar equipas de investigação em arquitectura e computação. Em Londres, a Bartlett School of Architecture e a Architectural Association oferecem dois dos mais prestigiados planos de estudos a nível mundial sobre estas temáticas. A TU Delft criou o laboratório Hyperbody e oferece dois programas de mestrado nesta área: Master in Computational Architecture e Master in Interactive Architecture. Na Angewandte de Viena, três programas académicos de referência são oferecidos sob a docência de Greg Lynn, Zaha Hadid e Hani Rashid. Na Europa, também em Zurique, Estugarda e Barcelona, e nos Estados Unidos da América, no MIT ou na Columbia University, se oferecem planos de estudos com a mesma inclinação. 

Muitas destas incubadoras de arquitectos digitais surgiram à distância de já terem formado, hoje, uma significativa comunidade profundamente crente nas possibilidades da arquitectura digital. Estes pequenos guetos iluminados, muito embora o seu trabalho seja ainda relativamente pouco publicado, divulgam-se internamente de forma muito activa através de blogues, sítios e outras plataformas, com uma certa aura de sociedade secreta, através das quais seguem avidamente os trabalhos dos seus semelhantes. Cada vez mais descolados, e até desinteressados, dos circuitos mais mainstream da arquitectura contemporânea, estes meninos digitais parecem atravessar uma puberdade pixelizada pela promessa da next big thing. Com um sentimento de heroísmo de quem se sabe na proa do acontecimento, podem ser interpretados como uma versão mais educada dos peitos intumescidos de orgulho do futurismo italiano, na medida em que parece, por vezes, quererem mover-se apenas em ciclos fechados de um mesmo deslumbre pelos seus novos instrumentos, mas também por si próprios. 

 

Como amar um monstro

Desde o aparecimento dos primeiros teares mecânicos, como lembra Umberto Eco em A História da Beleza12, que os homens exprimem o seu horror pelas máquinas. A estranheza e o desconhecimento do seu real poder têm de facto provocado na humanidade um certo temor por qualquer novíssimo dispositivo que prometa um upgrade à vida moderna e ao mesmo tempo ameace tomar conta dela. A generalidade da produção arquitectónica de génese marcadamente digital, com a sua ambiguidade funcional, a sua complexidade fluida, antropomórfica, mutante ou até alienígena, promove facilmente essa espécie de prurido generalizado contra a ameaça do seu domínio. Pouco democrática e por isso pouco amável, chega frequentemente sob a forma de imagens de leitura difícil. Na certeza (por vezes quase arrogância) do seu impacto visual, raramente estas crias digitais têm uma franca capacidade de comunicar para além desse impacto. E temos sempre medo daquilo que não conhecemos, e quando o que não conhecemos até parece ter garras e dentes num jogo de vídeo sobre o apocalipse, o monstro fica mesmo difícil de amar. Não restam dúvidas de que as ferramentas digitais permitiram o desenvolvimento de uma investigação estética sem precedentes, mas muitas persistirão ainda em relação ao verdadeiro impacto dessa nova estética na arquitectura do século XXI.

No início do século XX, na Bauhaus, Oskar Schlemmer começava a exprimir, em plena idade da máquina, a sua preocupação em relação à aceitação inquestionada e passiva do novo monstro que então ameaçava a arquitectura, a arte e a vida. No ensaio “Man and Art Figure” 13, Schlemmer abraça a mecanização como o verdadeiro emblema do seu tempo, reconhecendo-lhe o maravilhoso potencial de geração de hipóteses inteiramente novas e da promessa das mais ousadas fantasias. No entanto, perante um cenário em que, dizia, tudo o que podia ser mecanizado estava já mecanizado, a mestria nascia tão somente de saber reconhecer aquilo que nunca poderia ser mecanizado. Mas esse íntimo e precioso lugar estava, segundo ele, seriamente ameaçado por uma geração de criadores que, atónita com a avalancha de avanço tecnológico a que assistia, aceitava as maravilhas do engenho como formas acabadas de arte. Schlemmer, que as considerava apenas instrumentos, pré-requisitos para a verdadeira criação, denunciava então o advento eminente de uma arte sem propósito, profundamente alheada da verdade, da subtileza e do génio humano. A sua era materialista e prática tinha perdido, dizia, o sentido genuíno da diversão e do milagre. 

Na era da nova máquina, cintila nervoso e inseguro esse sentido. Se por um lado os arquitectos desta avalancha digital parecem ter perdido, algures a meio de uma linha de código, algum desse espaço para o milagre, e sobretudo para a diversão, por outro lado a opinião geral parece não querer sair das consensuais zonas de conforto em que o personal computer ainda vive no cliché contraditório de lhe acharem tudo “muito impessoal”. A última década tem vindo no entanto a assistir a algum comprometido esforço na mediação entre os dois extremos. Comprometido porque não se limita a pôr paninhos quentes sobre a discussão, porque de facto de uma maneira ou de outra arrisca pegar no monstro e fazê-lo mais fácil de amar, e tão simplesmente porque lhe oferece aquilo que já Schlemmer referia há cem anos: um propósito. 

Diller e Scofidio fizeram-no, em 2002, e a título de exemplo, através de uma velha manobra conhecida e quase sempre eficaz: o humor. Pegando no chavão da arquitectura interactiva, uma das promessas desta era, desenharam Blur Building como uma massa amorfa, possível graças a um grande investimento nos sistemas tecnológicos. Como reacção bem humorada à ditadura contemporânea do HD e à tendência das exposições universais para serem montra de virtuosismos técnicos sem fim, propuseram para a Swiss Expo um pavilhão de intencional baixa resolução que fosse ao mesmo tempo uma bandeira do anti-espectáculo. O edifício é nada mais que uma enorme massa de nevoeiro dentro da qual os visitantes perdem aquilo que Diller e Scofidio consideram como uma epidemia de hoje: a dependência da visão. Impedidos de ver além do primeiro plano desfocado, os utilizadores percorrem o espaço graças a um sistema de navegação interactivo desenhado em parceria com um artista plástico e uma equipa de desenvolvimento de media electrónicos. A alta-fidelidade visual dos ambientes imersivos digitais é contrariada por esta névoa analógica, promovendo a desorientação e com ela a recuperação do verdadeiro sentido da experiência.

François Roche, dos R&Sie(n), que desenvolve um tipo de trabalho muito infiltrado pelas tecnologias digitais, usa a ecologia como arma para oferecer propósito ao seu exercício. O intocável conceito da arquitectura sustentável será sem dúvida um nobre propósito e um monstro verde será sempre um monstro mais dócil. No entanto, Roche não se limita a colar a etiqueta green nos seus desenhos e a deixá-los criar sozinhos essa respeitável reputação. Fenómenos como o aquecimento global (num reconhecimento de que os ecossistemas foram violentamente alterados e de que o mundo natural reage descontrolado) são para ele a única e verdadeira razão pela qual que se podem agora desenhar edifícios com princípios de morfogénese. Um exemplo paradigmático, que Roche cita recorrentemente a propósito dos seus trabalhos, é um fenómeno evolutivo recente, a mutação hermafrodita do urso polar. Sujeito à aceleração da evolução provocada pelo aquecimento global, num cenário em que a vida selvagem é forçada a lidar directamente com o perigo, o urso polar negoceia e absorve a mudança, submetendo-se de forma natural às mutações sexual e fisiológica necessárias à readaptação do seu corpo e da sua identidade às condições de hoje. Para Roche, é este modelo de comportamento que o arquitecto contemporâneo deve assumir – mutação, simbiose, adaptação –, tendo presente a conjuntura ecológica e tecnológica dos nossos dias, negociar evitando tanto o modo moralista de ambicionar purificar o planeta como o modo catastrófico de recusar reconhecer as implicações dramáticas das suas mudanças.

Marc Fornes, formado pela AA e cuja carreira começou no atelier de Zaha Hadid, desenvolve agora no seu colectivo THEVERYMANY uma pesquisa arquitectónica profundamente centrada na computação. No seu trabalho é claro o investimento nos processos digitais como meio de especulação para novas formas de edificação. O paralelismo entre investigação estrutural e investigação estética é sem dúvida o propósito pleno do seu trabalho. A pesquisa de Marc tem-se centrado, nos últimos anos, na tentativa de fusão entre estrutura e superfície, explorando as possibilidades de desenvolvimento de peles autoportantes em geometrias de dupla curvatura. Labrys Frisae é uma instalação que construiu em 2011 para a Art Basel Miami e em que foi aplicado um dos sistemas estruturais que investiga actualmente: a utilização de componentes lineares – aqui cortados a laser em folhas de alumínio – para encorpar superfícies complexas. A definição destes componentes (que em Labrys Frisae são mais de 10 000), e do sistema de agregação entre eles, envolve processos de modelação, análise de superfície e investigação material unicamente possíveis através de métodos avançados de computação. 

As armas de sedução são, bem se sabe, coisa da qual se não deve falar muito. Sobretudo em público. Mas estas três, de propósito – humor, ecologia, sistemas estruturais – aqui chamadas a dar lição de como um monstro se pode amar, arremessam-se já agora, bem a propósito, também a ilustrar uma espécie de resposta à pergunta com que começámos. Se o cérebro é tão bom como a máquina? Deve ser. Porque a inteligência, estranhamente, até se vê bastante bem. |

 

 

* com base na Prova de Mestrado “Anatomia Now: o corpo na arquitectura da revolução digital”, apresentada ao Departamento de Arquitectura da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra em Julho de 2011, sob orientação de Jorge Figueira. 

 

1 Cf. Beatriz Colomina. Skinless Architecture. [Em linha.] Thesis. Weimar : Wissenschaftliche Zeitschrift der Bauhaus-Universität Weimar. Nº 3 (2003), p. 122-124. [Consult. 3 Mar. 2012]. Disponível em: https://docs.google.com/viewer?a=v&q=cache:W3_Aa89DqhcJ:e-pub.uni-weimar.de/opus4/files/1254/colomina.pdf &hl=pt-PT&gl=pt&pid=bl&srcid=ADGEESg7Bnwvop_xxacJ9khKYY_9ZmKjJqnid1wdZW4Rn3Xer4pap2GKFEFZwl3g_ 

 

2 Cf. id. The Split Wall: Domestic Voyeurism. in Sexuality & Space. Beatriz Colomina, ed. Meaghan Morris [et al.]. New York : Princeton University School of Architecture, 1996. (Princeton Papers on Architecture; 1), p. 76-130.

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3 Cf. Nicholas Negroponte. The Architecture MachineTowards a More Human Environment. Cambridge, Mass. : MIT Press, 1970. ISBN 0-262-64010-4.

 

4 Cf. Michael Benedikt, ed. Cyberspace: First Steps. William Gibson [et al.]. Cambridge, Mass. : MIT Press, © 1991. ISBN 0-262-02327-X.

 

5 Cf. John Frazer. An Evolutionary Architecture. [Em linha]. London : Architectural Association, © 1995. ISBN 1-870890-47-7. [Consult. 20 Mar. 2012]. Disponível em: http://www.aaschool.ac.uk/publications/ea/intro.html

 

6 Cf. William J. Mitchell. City of BitsSpace, Place, and the Infobahn. Cambridge, Mass. : MIT Press, © 1991. 232 p. ISBN 0-262-63176-8. [Em linha, 110 p.]. [Consult. 20 Mar. 2012]. Disponível em: https://docs.google.com/viewer?a=v&q=cache:cKM0q_XCbEUJ:www.kejvmen.sk/cob.pdf &hl=pt-PT&gl=pt&pid=bl&srcid=ADGEESjIZ9RcBplueDNHmUyVbLxr3xMwm9Uy2ejIwyWPoBXGjjhWWBiK_7ZjzSyexiv3hrfndSGAGk5hZHhsJ1qB5KoyRYEbso7igq-Dprv8WKXk6a_z_bdlecqHS5J3M7n

 

7 Cf. textos reunidos em: Martin Pearce; Neil Spiller, eds. Architects in Cyberspace. Martin Pearce [et al.] London : Architectural Design, 1996. (Architectural Design Profile; 118).

 

Cf. José Bragança de Miranda. Machines: The Functional Impossibility. [Em linha.]Prototypo. Lisboa : StereoMatrix. Nº 1 (Jan. 1999). [Consult. 21 Mar. 2012]. Disponível em: http://www.prototypo.com/Essays/Essays1/001_1.htm

 

9 Cf. Marshall McLuhan. The Gadget Lover: Narcissus as Narcosis. in Understanding Media: The extensions of man. [Em linha]. New York : McGraw Hill, 1964, p. 45-52. [Consult. 21 Mar. 2012]. Disponível em: http://dm.ncl.ac.uk/courseblog/files/2010/10/mcluhan_understanding_media.pdf

 

10 Cf. Derrick de Kerchove. Tecnofetichismo. in A Pele da cultura: uma investigação sobre a nova realidade electrónica. Lisboa : Relógio d’Água, 1997.

 

11 Cf. Claudia Springer. Electronic Eros. Austin : University of Texas Press, 1996. 192 p. SBN: 978-0-292-77697-5.

 

12 Cf. Umberto Eco. A História da Beleza. Miraflores : Difel, 1999. 438 p., ilust. ISBN: 9789722907163.

 

13 Cf. Oskar Schlemmer. Man and Art Figure. in Walter Gropius; Arthur Wesinger, eds. The Theatre of the Bauhaus. Baltimore : The Johns Hopkins University Press, 1996, p. 17-32. ISBN: 0801855284.

 


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